sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Ainda, e sempre, Bandeira

Meus encontros com Bandeira

Alberto da Costa e Silva

Estava nos meus 15 anos. Parecia, porém, ainda mais novo, porque era franzino e frágil. Sabia de cor a metade dos versos de Bandeira, que tinha então 60 anos, mas parecia também mais jovem - um quarentão que os cuidados impostos pela tuberculose conservaram desde a adolescência.

Estávamos em fins de 1945, no Rio de Janeiro. Fomos, Antônio Carlos Vilaça, o fotógrafo Aldir Vieira e eu, entrevistar o poeta para um jornalzinho de estudantes. A visita fora marcada pelo telefone e a voz que me chegara pelo aparelho era amável e alegre. O poeta abriu a porta com um sorriso largo. E entramos em seu apartamento da Avenida Beira-Mar, cheio de livros, quadros, um bronze de Bandeira feito, se não me engano, pelo Dante Milano, e dois retratos que Portinari pintara.

Bandeira acolheu-nos de pijama e chinelos, magro, moreno e encurvado, e assim deixou-se fotografar. Levantara havia pouco da sesta e foi-nos fazer um cafezinho. Conversamos longamente e ele, no íntimo, a achar imensa graça naqueles três meninotes. Levou, contudo, a entrevista a sério. Declarou-nos as coisas de costume: que sua maior aspiração era a de viver em paz; que Mário de Andrade fora a calva mais inteligente da sua geração; que a poesia devia descer até o povo; que começara a escrever aos 12 anos (o que fazia a gente se sentir como colega); que Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Ribeiro do Couto, Raul Bopp, Augusto Frederico Schmidt, Pedro Dantas, Dante Milano, Jorge de Lima e Cecília Meireles eram os autores contemporâneos de sua predileção.

Disse-nos considerar o equatoriano Jorge Carrera Andrade superior a Pablo Neruda, cujo nome surgira na conversa por causa de duas bandeiras, a do Chile e a do Brasil, que o chileno havia desenhado numa das paredes do apartamento. Mais tarde, entristecido com Neruda, mandou cobrir de tinta o desenho.

Guardo desse dia o autógrafo de Desencanto, e, sempre que o leio, volta-me a voz pausada, quase rouca, de Bandeira, a dizer-nos com indisfarçável emoção: "Eu faço versos como quem morre..."

Voltei, algumas poucas vezes, a ver o poeta. Ele emprestou-me, certo dia, o seu exemplar com dedicatória de O empalhador de passarinhos, de Mário de Andrade, livro que lhe devolvi religiosamente, no prazo certo, para grande surpresa sua. E não me arrependo de ter sido um dos cento e poucos leitores que votaram para deputado federal - não me lembro bem em que ano - num certo Professor Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho.

O pequeno partido que o convencera, por coerência, a candidatar-se não podia imaginar, que, discretíssimo, o grande poeta - porque ele já era então o Grande Poeta - sequer revelaria aos seus alunos de literatura hispano-americana, na Faculdade de Letras, que era candidato. Lembro-me de um encontro logo após as eleições, com ele e Osório Borba, na Rua México, e a graça enorme com que o poeta voluntariamente derrotado contava como fizera a campanha eleitoral em silêncio, trancado no seu quarto.

O Bandeira, porém, que hoje freqüenta a minha memória é o daquela tarde dos meus 15 anos, na Avenida Beira-Mar, desengonçado e paciente, a resvalar de vez em quando para a melancolia.

Foi em 1954 que conversei com ele pela última vez. Levei-lhe um livro. Bandeira já se mudara para outro apartamento no mesmo edifício. E, se conservava o grande sorriso de nove anos antes, desta vez não me falou de poesia, mas da morte, "indesejada das gentes", que, contudo, esperara desde a mocidade e continuaria a esperar até 1968. Esta a impressão que sempre me deu: a de serenidade, coerência, ordem e limpeza, qualidades que nele se casavam com a bondade, a paciência e o enternecido bom humor.

Foi, talvez sem o desejar, o mestre de todos nós. E ninguém como ele, no Brasil do século 20, soube tão bem escrever poesia.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 16/08/2006

    Extraido do site da ABL, em 23/12/2011, 21h 08 min, sem permissão explícita.

Versos de Natal

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

Manuel Bandeira, 1939.

in "Bandeira, Antologia Poética", José Olympio, 1983, 15ª edição.
Ortografia respeitada.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Paulo Mendes Campos

Litogravura


Eu voltava cansado como um rio.
No Sumaré altíssimo pulsava
a torre de tevê, tristonha, flava.
Não: voltava humilhado como um tio
bêbado chega à casa de um sobrinho.
Pela ravina, lento, lentamente,
feria-se o luar, num desalinho
de prata sobre a Gávea de meus dias.
Os cães quedaram quietos bruscamente.
Foi no tempo dos bondes: vi um deles
raiar pelo Bar Vinte, borboleta
flamante, touro rútilo, cometa
que se atrasa no cosmo e desespera:
negra, na jaula em fuga, uma pantera.

Passei a mão nos olhos: suntuosa,
negra, na jaula em fuga, ia uma rosa.



Testamento do Brasil & O Domingo Azul do Mar, Ed. do Autor, 1966
Ortografia atualizada em 02/12/2011