sábado, 24 de abril de 2021

 

Padre Antônio Vieira: AMOR E TEMPO Tudo cura o tempo, tudo faz...

AMOR E TEMPO
Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera !
São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas, que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza, o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira; embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os olhos, com que vê que não via; e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor ?! O mesmo amar é causa de não amar e o ter amado muito, de amar menos.

 Texto clássico, sujeito a controvérsias...

domingo, 18 de abril de 2021

Um texto

 

Uma noite, uma gata

 

 

 

            Ela está agora em meu colo, enrodilhada, e serenamente ressona confiante. Para ela, o mundo lá fora não existe. Apenas ela e eu, tarde da noite.

            Passo a mão em sua cabeça, desço ao pescoço, ao dorso, até ao fim, que se encontra com o início, de onde recomeço.

            Agora lhe afago o queixo, onde sinto todo o seu contentamento. Olhos cerrados, entrega-se totalmente.

            É assim quase todas as noites, enquanto diante do monitor de led vou assistindo ao mundo lá fora, distante, como a um filme distópico, bizarro e cruel. Facilmente passo a outro filme onde vejo as belezas e maravilhas desse mesmo mundo, tão contraditório.

            Agora saltou de meu colo e me pede água. Levanto-me da cadeira, vou ao banheiro, abro a torneira e ela bebe na concha de minha mão. Sinto-me, a um tempo, senhor e vassalo.

            Não poucas vezes reflito sobre a nossa relação. Construo analogias, humanizo essa proximidade, busco saber quem, dos que já se foram, está aqui hoje, comigo, neste corpinho que me aquece as pernas. Mas não sou budista, não sei se creio na metempsicose.

            Ela agora cobriu o focinho com a pata esquerda.

         Faz um frio leve e saudável, a Lua já vai minguando, amanhã será um novo dia. De minha janela verei o dia renascer ouvindo os galos e os bem-te-vis, e as maritacas estridentes.

            As novas folhas do ipê já brotam, o Sol aparece a cada dia um pouco mais à minha esquerda, e mais cedo, e ouvi há dois dias uma sabiá.

            Ah, e pude ver o alinhamento da Lua com Júpiter e Saturno durante três noites.

            E ela dorme, apenas dorme.

            A eternidade é uma gata adormecida.

           

           

           

           

           

terça-feira, 5 de janeiro de 2021