segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

O Sapo Verde

Aquele amarelo que apareceu um dia em nossa terra, ou por outra, aquele japonês, pois não sei se um chim daria o mesmo desfecho ao caso, dedicava-se a trabalhos de papel. Com incrível celeridade, dobrava, redobrava, multidobrava, premia aqui, puxava ali, e pronto: saía um pato, uma cesta, um avião, um urso, um homem sentado, uma mulher dançando, um navio, todas as coisas que há no mundo. Algumas dessas habilidades, ele as fazia às vezes em câmara lenta, para que a gente pudesse aprender. Mas era impossível guardar de memória o segredo do sapo verde, o maravilhoso sapo verde que comportava nada menos de sessenta e quatro dobras e que dava um salto quando lhe tocavam no lombo. Comprei um e fui para casa desmanchá-lo. Ficou-me nas mãos um quadrado de papel, inextricavelmente entrecruzado de vincos. Como não consegui fazer a operação contrária, isto é, rearmar o sapo, dali a dias encomendei outro.
- Hoje não poder - disse ele.
- Por quê?
- Por acabar papel verde.
- E por que não faz um sapo branco?...ou um sapo azul...ou um sapo vermelho...ou...
Mas o seu quase imperceptível sorriso de comiseração cortou-me a linda seqüência colorida.


Mário Quintana, Poesias, 2ª ed., Ed. Globo/MEC, Porto Alegre, 1972.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O velho Braga de cada dia


O Sino de Ouro

Contaram-me que, no fundo do sertão de Goiás, numa localidade de cujo nome não estou certo, mas acho que é Porangatu, que fica perto do rio de Ouro e da serra de Santa Luzia, ao sul da serra Azul – mas também pode ser Uruaçu, junto do rio das Almas e da serra do Passa Três(minha memória é traiçoeira e fraca; eu esqueço os nomes das vilas e a fisionomia dos irmãos; esqueço os mandamentos e as cartas e até a amada que amei com paixão) – mas me contaram que em Goiás, nessa povoação de poucas almas, as casas são pobres e os homens pobres, e muitos são parados e doentes e indolentes, e mesmo a igreja é pequena, me contaram que ali tem – coisa bela e espantosa – um grande sino de ouro.
Lembrança de antigo esplendor, gesto de gratidão, dádiva ao Senhor de um grã-senhor – nem Chartres, nem Colônia, nem S. Pedro ou Ruão, nenhuma catedral imensa com seus enormes carrilhões tem nada capaz de um som tão lindo e puro como esse sino de ouro, de ouro catado e fundido na própria terra goiana nos tempos de antigamente.
É apenas um sino, mas é de ouro. De tarde seu som vai voando em ondas mansas sobre as matas e os cerrados, e as veredas de buritis, e a melancolia do chapadão, e chega ao distante e deserto carrascal, e avança em ondas mansas sobre os campos imensos, o som do sino de ouro. E a cada um daqueles homens pobres ele dá cada dia sua ração de alegria. Eles sabem que de todos os ruídos e sons que fogem do mundo em procura de Deus – gemidos, gritos, blasfêmias, batuques, sinos, orações, e o murmúrio temeroso e agônico das grandes cidades que esperam a explosão atômica e no seu próprio ventre negro parecem conter o germe de todas as explosões – eles sabem que Deus, com especial delícia e alegria ouve o som alegre do sino de ouro perdido no fundo do sertão. E então é como se cada homem, o mais pobre, o mais doente e humilde, o mais mesquinho e triste, tivesse dentro da alma um pequeno sino de ouro.
Quando vem o forasteiro de olhar aceso de ambição e propõe negócios, fala em estradas, bancos, dinheiro, obras, progresso, corrução – dizem que esses goianos olham o forasteiro com um olhar lento e indefinível sorriso e guardam um modesto silêncio. O forasteiro de voz alta e fácil não compreende; fica, diante daquele silêncio, sem saber que o goiano está quieto, ouvindo bater dentro de si, com um som de extrema pureza e alegria, seu particular sino de ouro. E o forasteiro parte, e a povoação continua pequena, humilde e mansa, mas louvando a Deus com sino de ouro. Ouro que não serve para perverter, nem o homem nem a mulher, mas para louvar a Deus.
E se Deus não existe não faz mal. O ouro do sino de ouro é neste mundo o único ouro de alma pura, o ouro no ar, o ouro da alegria. Não sei se isso acontece em Porangatu, Uruaçu ou outra cidade do sertão. Mas quem me contou foi um homem velho que esteve lá; contou dizendo: “eles têm um sino de ouro e acham que vivem disso, não se importam com mais nada, nem querem mais trabalhar; fazem apenas o essencial para comer e continuar a viver, pois acham maravilhoso ter um sino de ouro”.
O homem velho me contou isso com espanto e desprezo. Mas eu contei a uma criança e nos seus olhos se lia seu pensamento: que a coisa mais bonita do mundo deve ser ouvir um sino de ouro. Com certeza é esta mesma a opinião de Deus, pois ainda que Deus não exista ele só pode ter a mesma opinião de uma criança. Pois cada um de nós quando criança tem dentro da alma seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrução, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e lama e podridão.
Março, 1951

Rubem Braga,200 Crônicas Escolhidas, Ed. Record, Rio de Janeiro, 1977, pág.138/139.

sábado, 8 de dezembro de 2007

A mensagem perdida


Arrancaram uma folha ao livro do tempo, e eis que era insubstituível, capital! Em vão procurei de quatro patas, como um bibliófilo, rosnando e farejando por baixo dos móveis. Ó lombadas implacáveis!
Uma traça visitou-me em sonhos; e do alto do cartapácio vomitou toda a página devorada, em tom cínico de speaker. Meu ouvido funcionava como um disco, e cada palavra era um fulgor indelével, uma verdade capital! Batia palmas e palmas, com medo de chorar. A página perdida e para sempre achada, a mensagem telegráfica do Eterno a si mesmo, era simples como um tópico de jornal. Ó sublime reportagem, pensava, ao regressar à minha pele, contarei tudo, tintim por tintim.
Mas no regresso ao vale da cama, - o bombardeiro deixava cair uma a uma as grandes rosas desfolhadas – partiu-se o fio da evidência, e as palavras rolaram pelo chão como as contas de um colar...
Desde então, tenho compulsado os grossos tomos carunchosos, percorrendo o índice com uma paciência de maníaco. Sabe lá... entre uma folha e outra folha, no papel sujo e roído, brilhará um dia a palavra que espero há tantos anos, desde os meus livros cartonados, na escola.

Augusto Meyer, Poesias (1922-1953), Livraria São José, Rio de Janeiro, 1957