segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

O Sapo Verde

Aquele amarelo que apareceu um dia em nossa terra, ou por outra, aquele japonês, pois não sei se um chim daria o mesmo desfecho ao caso, dedicava-se a trabalhos de papel. Com incrível celeridade, dobrava, redobrava, multidobrava, premia aqui, puxava ali, e pronto: saía um pato, uma cesta, um avião, um urso, um homem sentado, uma mulher dançando, um navio, todas as coisas que há no mundo. Algumas dessas habilidades, ele as fazia às vezes em câmara lenta, para que a gente pudesse aprender. Mas era impossível guardar de memória o segredo do sapo verde, o maravilhoso sapo verde que comportava nada menos de sessenta e quatro dobras e que dava um salto quando lhe tocavam no lombo. Comprei um e fui para casa desmanchá-lo. Ficou-me nas mãos um quadrado de papel, inextricavelmente entrecruzado de vincos. Como não consegui fazer a operação contrária, isto é, rearmar o sapo, dali a dias encomendei outro.
- Hoje não poder - disse ele.
- Por quê?
- Por acabar papel verde.
- E por que não faz um sapo branco?...ou um sapo azul...ou um sapo vermelho...ou...
Mas o seu quase imperceptível sorriso de comiseração cortou-me a linda seqüência colorida.


Mário Quintana, Poesias, 2ª ed., Ed. Globo/MEC, Porto Alegre, 1972.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O velho Braga de cada dia


O Sino de Ouro

Contaram-me que, no fundo do sertão de Goiás, numa localidade de cujo nome não estou certo, mas acho que é Porangatu, que fica perto do rio de Ouro e da serra de Santa Luzia, ao sul da serra Azul – mas também pode ser Uruaçu, junto do rio das Almas e da serra do Passa Três(minha memória é traiçoeira e fraca; eu esqueço os nomes das vilas e a fisionomia dos irmãos; esqueço os mandamentos e as cartas e até a amada que amei com paixão) – mas me contaram que em Goiás, nessa povoação de poucas almas, as casas são pobres e os homens pobres, e muitos são parados e doentes e indolentes, e mesmo a igreja é pequena, me contaram que ali tem – coisa bela e espantosa – um grande sino de ouro.
Lembrança de antigo esplendor, gesto de gratidão, dádiva ao Senhor de um grã-senhor – nem Chartres, nem Colônia, nem S. Pedro ou Ruão, nenhuma catedral imensa com seus enormes carrilhões tem nada capaz de um som tão lindo e puro como esse sino de ouro, de ouro catado e fundido na própria terra goiana nos tempos de antigamente.
É apenas um sino, mas é de ouro. De tarde seu som vai voando em ondas mansas sobre as matas e os cerrados, e as veredas de buritis, e a melancolia do chapadão, e chega ao distante e deserto carrascal, e avança em ondas mansas sobre os campos imensos, o som do sino de ouro. E a cada um daqueles homens pobres ele dá cada dia sua ração de alegria. Eles sabem que de todos os ruídos e sons que fogem do mundo em procura de Deus – gemidos, gritos, blasfêmias, batuques, sinos, orações, e o murmúrio temeroso e agônico das grandes cidades que esperam a explosão atômica e no seu próprio ventre negro parecem conter o germe de todas as explosões – eles sabem que Deus, com especial delícia e alegria ouve o som alegre do sino de ouro perdido no fundo do sertão. E então é como se cada homem, o mais pobre, o mais doente e humilde, o mais mesquinho e triste, tivesse dentro da alma um pequeno sino de ouro.
Quando vem o forasteiro de olhar aceso de ambição e propõe negócios, fala em estradas, bancos, dinheiro, obras, progresso, corrução – dizem que esses goianos olham o forasteiro com um olhar lento e indefinível sorriso e guardam um modesto silêncio. O forasteiro de voz alta e fácil não compreende; fica, diante daquele silêncio, sem saber que o goiano está quieto, ouvindo bater dentro de si, com um som de extrema pureza e alegria, seu particular sino de ouro. E o forasteiro parte, e a povoação continua pequena, humilde e mansa, mas louvando a Deus com sino de ouro. Ouro que não serve para perverter, nem o homem nem a mulher, mas para louvar a Deus.
E se Deus não existe não faz mal. O ouro do sino de ouro é neste mundo o único ouro de alma pura, o ouro no ar, o ouro da alegria. Não sei se isso acontece em Porangatu, Uruaçu ou outra cidade do sertão. Mas quem me contou foi um homem velho que esteve lá; contou dizendo: “eles têm um sino de ouro e acham que vivem disso, não se importam com mais nada, nem querem mais trabalhar; fazem apenas o essencial para comer e continuar a viver, pois acham maravilhoso ter um sino de ouro”.
O homem velho me contou isso com espanto e desprezo. Mas eu contei a uma criança e nos seus olhos se lia seu pensamento: que a coisa mais bonita do mundo deve ser ouvir um sino de ouro. Com certeza é esta mesma a opinião de Deus, pois ainda que Deus não exista ele só pode ter a mesma opinião de uma criança. Pois cada um de nós quando criança tem dentro da alma seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrução, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e lama e podridão.
Março, 1951

Rubem Braga,200 Crônicas Escolhidas, Ed. Record, Rio de Janeiro, 1977, pág.138/139.

sábado, 8 de dezembro de 2007

A mensagem perdida


Arrancaram uma folha ao livro do tempo, e eis que era insubstituível, capital! Em vão procurei de quatro patas, como um bibliófilo, rosnando e farejando por baixo dos móveis. Ó lombadas implacáveis!
Uma traça visitou-me em sonhos; e do alto do cartapácio vomitou toda a página devorada, em tom cínico de speaker. Meu ouvido funcionava como um disco, e cada palavra era um fulgor indelével, uma verdade capital! Batia palmas e palmas, com medo de chorar. A página perdida e para sempre achada, a mensagem telegráfica do Eterno a si mesmo, era simples como um tópico de jornal. Ó sublime reportagem, pensava, ao regressar à minha pele, contarei tudo, tintim por tintim.
Mas no regresso ao vale da cama, - o bombardeiro deixava cair uma a uma as grandes rosas desfolhadas – partiu-se o fio da evidência, e as palavras rolaram pelo chão como as contas de um colar...
Desde então, tenho compulsado os grossos tomos carunchosos, percorrendo o índice com uma paciência de maníaco. Sabe lá... entre uma folha e outra folha, no papel sujo e roído, brilhará um dia a palavra que espero há tantos anos, desde os meus livros cartonados, na escola.

Augusto Meyer, Poesias (1922-1953), Livraria São José, Rio de Janeiro, 1957




quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Ainda a Melancolia

Ontem, ao navegar pelas miríades de referências à palavra 'melancolia', encontrei um site - http://www.cielosur.com -em que uma matéria a respeito de cometas usa como ilustração a gravura de Dürer. Fiquei bolado, como diria a garotada. Há muitos anos conheço e olho para essa gravura, e nunca vi , no astro que aparece ao fundo, senão o Sol. Sempre me ative ao enigmático atelier mostrado nos primeiros planos. Agora, percebo que as linhas convergentes no último plano da gravura criam uma velocidade de afastamento, e orientam o olhar desde a esquerda, onde um rastro muito luminoso vai ao encontro ( ou emana ) do ponto que sempre supus ser o Sol.
Ora, isso transformaria a gravura em uma imagem noturna. Observando a luz que banha os primeiros planos, vemos que ela vem de cima, pela direita. Ou é uma luz artificial (sobrenatural) ou é o Sol, às dez horas da manhã ou às duas da tarde. Dürer, sem duvida, me deixa cada vez mais bolado...

domingo, 25 de novembro de 2007

Emílio Moura

Ode ao primeiro poeta

- Comme le monde etáit jeune,
et que la mort etáit loin!
Georges Chennevière

Quando os homens desceram, um dia, dos montes e se detiveram, trêmulos, diante da planície imensa,
eu te vi erguendo a tua voz forte , límpida e viva.
Eras jovem e tinhas a alegria de quem está descobrindo o mundo.
Foi a tua palavra que modelou a primeira paisagem, deu ritmo aos ventos e imaginou a beleza ingênua dos primeiros e únicos símbolos que se perpetuaram.
Eras criatura e criador.
Estavas no gesto maravilhado que armava as primeiras tendas e na mão indecisa que traçava o desenho mágico dos caminhos que se improvisavam;
na imagem da vida em que se embebeu o primeiro surto livre do espírito;
estavas em ti mesmo e fora de ti,
quando os homens desceram, um dia, dos montes e se detiveram trêmulos,
diante da planície imensa...

Emílio Moura (1902/1971), Itinerário Poético, 2ª ed, Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2002.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Resenha

Aspectos de Marinha na obra de João Zeferino da Costa, Arnaldo Machado, Rio de Janeiro, ed. do autor, 1984, 70p.
A monografia em foco, originalmente trabalho apresentado em sessão de 03/06/1983 no VIII Congresso Nacional de Museus, Brasília, DF, foi publicada com ligeiras modificações e acréscimos no ano seguinte. O objetivo proposto pelo autor foi o de “focalizar a pintura de João Zeferino da Costa com aspectos de marinha e sustentar o valor de sua obra, ao nível da dos melhores mestres brasileiros neste gênero.”
O trabalho se concentra na análise histórico-formal das pinturas murais executadas por Zeferino da Costa na abóboda da nave central da Igreja da Candelária. Informa-nos o Prof. Arnaldo Machado que a execução daquelas pinturas foi contratada a Zeferino da Costa pela Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária em junho de 1889, e incluiu também as pinturas para o coro da Igreja.
Nas seis pinturas do teto da nave central são narrados momentos significativos da história da Igreja da Candelária. Os títulos das obras são: ‘A Partida’, ‘A Tempestade’, ‘A Chegada’, ‘O Voto Cumprido’, ‘A Sagração’ e ‘A Inauguração’. As duas últimas não apresentam aspectos de marinha e não foram, por isso, analisadas em detalhe. Para os outros quatro murais, o autor nos dá minuciosas descrições – objetivas e subjetivas – e contextualização histórica. As reproduções fotográficas, em cores, das obras descritas são excelentes e os detalhes mais significativos são reproduzidos em preto-e-branco, com o mesmo nível de qualidade.
Para dar uma idéia do valor dessas descrições, transcrevo trechos de duas delas:
'A Partida' - Fixa a partida dos fundadores da Igreja, o casal Antônio Martins da Palma e Leonor Gonçalves, da Ilha da Palma, no arquipélago das Canárias, em viagem para as Índias de Espanha. A cena ocorre nos primeiros anos do Séc. XVII. O ambiente é de tranqüilidade e esperança... Marinheiros executam rápidas manobras, próprias do momento: um deles, na proa, acompanha a subida da âncora, que já aparece acima da água, suspensa da amarra que sai do escovém... No cais, pessoas amigas dão adeus para os viajantes, que permanecem na amurada de estibordo ou boreste, onde já foi fechado o portaló, que dá entrada no navio. D. Leonor Gonçalves agita um lenço em despedida. Ao seu lado está a dama de companhia...
'A Tempestade'O segundo quadro mostra o navio envolvido em terrível tempestade, parecendo desconjuntar-se e prestes a afundar... O vento rompe o cordame e assobia pelas enxárcias retesadas, enquanto a marinhagem procura segurar os cabos que se soltaram... O contramestre transmite ordens nervosas por um porta-voz, com que se faz ouvir à distância, em meio ao ruído da tempestade... O armador estreita a esposa, que busca amparo no seu peito. No gesto da mão espalmada para o alto, ele traduz a sua confiança na Virgem, que aparece no céu, entre nuvens carregadas... Este painel marca uma característica do pintor: a sua capacidade de representar o poder da natureza, visto aqui na tormenta que açoita a embarcação. O céu ameaçador e a fúria do mar são uma expressão do gênio de Zeferino.
O Prof. Arnaldo ressalta em seu trabalho a dedicação e a seriedade com que Zeferino da Costa desincumbiu-se da tarefa, fazendo extensas e profundas pesquisas iconográficas. Em carta de 15/01/1891 enviada de Roma aos Provedores da Irmandade, Zeferino escreve: “... a procura das formas das naus e outras embarcações da época de 1600, para o que tive de fazer uma viagem de mais de dois meses por diferentes cidades da Itália, tendo, felizmente, conseguido obter para estes estudos uma muito especial licença para, no Museu do Real Arsenal de Marinha de Veneza, desenhar, do natural, o que me interessasse, pois este Museu possui uma riquíssima coleção de modelos das naus antigas, de diversas épocas.”
O autor inclui diversas reproduções dos estudos desenvolvidos por Zeferino para as pinturas que executaria na Candelária. Informa-nos, ainda, que “no meado de 1982, no correr do mês de julho, o mundo das artes foi surpreendido com a notícia publicada na imprensa de que Leone Galeria de Arte, no Rio de Janeiro, levaria a leilão seis quadros de Zeferino da Costa, constituindo estudos para as pinturas do teto da nave central da Candelária." O autor examinou os seis quadros e constatou serem pinturas a óleo sobre madeira, datando de 1895 e 1896, executados em Roma e medindo 62,5 x 46,5 cm cada um. Concluiu que aqueles quadros “terão sido forçosamente, os estudos para a definição de cores, antes da execução da pintura mural.” Em 1913 as pinturas precisaram ser restauradas (o Prof. Arnaldo não nos diz o porquê), e isso foi feito pelo próprio pintor, que nessa época já sofria graves limitações de seus movimentos devido a moléstia reumática. Essa moléstia o tornaria paralítico pouco depois, causando a sua morte em 1915. Seu ex-discípulo Sebastião Vieira Fernandes executou os trabalhos de restauração sob a supervisão do mestre.
Fruto de minuciosa e abrangente pesquisa, essa monografia do prof. Arnaldo Machado, museólogo e ex-chefe do Museu do Banco do Brasil, é importante contribuição aos estudos da história da arte brasileira. No aspecto gráfico, é livro de alta qualidade, impresso em papel couchê, no formato 18 x 23 cm. As reproduções fotográficas são devidas ao próprio autor (preto-e-branco) e a Luiz Carlos Miguel (cromos). Encerra o trabalho uma lista bibliográfica de 46 títulos.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Oswaldo Goeldi

Cena Urbana, xilogravura, s/d, tiragem póstuma por Noemi Ribeiro


visite http://www.oswaldogoeldi.org.br/ , que gentilmente permitiu a inclusão desta imagem.







I - Apresentação do artista, por Manuel Bandeira

Uma das mais fortes e curiosas exposições de arte que já vi foi improvisada num bar, depois da meia-noite, quase à hora crispante de se correrem as cortinas de aço. Apresentaram-me um rapaz anguloso, de nariz duro, olho metálico: o artista Oswaldo Goeldi. Um nome em branco para mim. O rapaz trazia uma pasta embaixo do braço. Sentou-se à mesa, abriu a pasta, e então, correu em volta de mão em mão uma estupenda coleção de gravuras em madeira e desenhos a pena e a lápis. Que emocionante surpresa! Todo um mundo interior riquíssimo abria-se ali, atestando uma força de concepção, uma magistralidade de traço, um senso dramático da paisagem urbana, que nos enchia de pasmo.
A imaginação de Oswaldo Goeldi tem a brutalidade sinistra das misérias das grandes capitais, a soledade das casas de cômodos onde se morre sem assistência, o imenso ermo das ruas pela noite morta e dos cais pedrentos batidos pela violência de sóis explosivos, - arte de panteísmo grotesco, em que as coisas elementares, um lampião de rua, um poste, a rede telefônica, uma bica de jardim, entram a assumir de súbito uma personalidade monstruosa e aterradora. Um admirável artista.
Mas donde saíra? Como viera? Por que assim inteiramente desconhecido?
Oswaldo Goeldi nasceu em 1895, no Rio. Viveu a primeira infância no Pará. A riqueza da fauna e da flora que tinha diante dos olhos, alimentaram a fantasia do menino, da mesma forma que mais tarde as freqüentes viagens entre o Amazonas e o Rio, duas travessias à Europa, um poder de impressões diversas, portos, cidades, raças, - tudo o que a arte do homem refletiria depois com vigor insólito.
Em 1915 iniciou-se em Berna em estudos químicos e agrícolas, mas o pendor para a arte levou-o a abandonar tudo, partindo para Genebra, bom centro artístico, onde naquele tempo existia ainda o grande Ferdinando Hodler. Ali, na Galeria Moos, via Goeldi quadros de Gauguin, Cézanne, Renoir, Van Gogh, Van Dongen, Signac... Já nessa época produzia muitos desenhos. Passou pelo atelier de Serge Pahnke e Henry Van Muyden, onde recebeu uma espécie de educação às avessas, pois naquele ambiente acadêmico se lhe formou uma profunda, definitiva antipatia contra essa arte morta, sem imaginação, sem alma, sem nervos. Os verdadeiros mestres de Goeldi foram aqueles artistas cujos quadros ele via na Galeria Moos; foi sobretudo a arte visionária de Kubin, o tcheco fantástico, o genial ilustrador de Poe, de Gérard de Nerval, de Barbey d’Aurevilly, do Livro de Daniel.
Em 1920 voltou Goeldi ao Brasil, onde nunca realizou nenhuma exposição. Todavia tem trabalhado continuamente e só ultimamente a sua obra começou a ser conhecida. Tal o artista que apresenta neste álbum alguns exemplares de gravura em madeira, pelos quais se pode apreciar a sua força de intuição e temperamento. (1930)


Do livro "Andorinha, Andorinha", J.O., Rio, 1966, págs. 58/59.
Apresentação do álbum "Dez Gravuras em Madeira",Oficina Gráfica Irmãos Pongetti, Rio de Janeiro, 1930 .



quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O "Gitanjali", Rabindranath Tagore, texto 51

Caíra a noite. Os nossos misteres de cada dia tinham sido cumpridos. Nós pensávamos que tivesse chegado o último hóspede dessa noite e que na aldeia as portas estivessem todas fechadas. Apenas alguém falou que o rei estava para chegar. Nós rimos e dissemos: "Não, não pode ser!"
Pareceu que houve pancadas na porta e nós dissemos que isso não era senão o vento. Apagamos as lâmpadas e deitamo-nos para dormir. Apenas, alguém falou: "É o mensageiro!" Nós rimos e dissemos: "Não; deve ser o vento!"
Houve um ruído no silêncio da noite. Nós sonolentamente pensamos que era a trovoada distante. A terra estremeceu, as paredes abalaram-se, e isso perturbou o nosso sono. Apenas, alguém falou que era um rodar de rodas. Nós dissemos num sonolento resmungo: "Não; isso deve ser o ronco rouco das nuvens!"
Estava ainda escura a noite, quando rufou o tambor. Ouviu-se esta voz: "Despertai-vos! Não tardeis!" Apertamos as mãos contra o coração e trememos de medo. Alguém falou: "Vede! Eis o estandarte do rei!" Pusemo-nos de pé e exclamamos: "Não há tempo a perder!"
O rei chegou - mas onde estão as luzes, onde estão os diademas? Onde está o trono onde deve sentar-se? Oh! vergonha, oh! suprema vergonha! Onde estão a sala, as alfaias? Alguém falou: "É inútil essa lamentação! Saudai-o com as vossas mãos vazias, levai-o aos vossos aposentos vazios!"
Abram-se as portas! soem as trompas! Chegou, no fundo da noite, o rei da nossa casa escura e triste. A trovoada ronca no céu. A sombra estremece de relâmpagos. Traze para fora o teu farrapo de esteira e estende-o no pátio. Chegou de repente, com a tempestade, o nosso rei da noite pavorosa.
Trad. Guilherme de Almeida, Ed. José Olympio, Rio de Janeiro, 3ª ed., 1943 (ortografia atualizada em 08/11/2007 por H. Chaudon).

domingo, 4 de novembro de 2007

Flauta doce


Para quem aprecia música Renascentista, um endereço : http://www.aimagemdamelancolia.net/.
Trata-se de um consort de flautas, formado por músicos portugueses. Estão lá disponíveis algumas melodias em formato MP3 que podem ser baixadas. Confiram.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Orelha de um livro

Kátia Jacobson, artista plástica em pleno domínio de seus meios de expressão, expõe seu primeiro livro de poemas.
Um livro de aprendizagens várias. Um corpo e uma alma aprendendo a viver, vivendo para aprender, apreender.
Uma mulher com todos os sentidos despertos - e isso não é pouco - tocando os limites, buscando alargar esses horizontes segundo uma tradição.
E a qual tradição nos remete? Sem dúvida, àquela que afirma: o Verbo demora entre nós.
Livro de fundação, de resgate. Mas também, e principalmente, de projeção. E a lua (a Luz da lua) é aqui a réstia a iluminar e orientar a jornada, digo, a peregrinação.
Se me fosse pedido para destacar um poema deste livro, certamente eu escolheria aquele - ABRIL (ou BRANCO E PRETO) - que nos situa em pleno engarrafamento de trânsito, banal e prosaico, mas onde a passagem de uma mulher com uma pinha nas mãos instaura a Poesia. Há outros poemas do mesmo quilate. Ao leitor o prazer do encontro.
Desce, maná, sobre nós.

( Luz da Lua sobre Metade do Papel, de Kátia Jacobson, Ed. Muiraquitã, Niterói, 2002, 88 pág.)

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

CAMÕES E AS ALTAS TORRES

De Camões, em pura verdade, muito pouco sabemos. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu mais pobre ainda (se não miseravelmente), ele, que acumulou bens que milhares e milhares de homens não têm chegado para delapidar. E será difícil exaurir tão fabulosa fortuna. Porque – quem o duvida? – foi Camões que deu à nossa língua este aprumo de vime branco, este juvenil ressoar de abelhas, esta graça súbita e felina, esta modulação de vagas sucessivas e altas, este mel corrosivo da melancolia. Daí ser raro o verso português digno de tal nome que as águas camonianas não tenham molhado de luz, desde as mais ásperas das suas consoantes às suas vogais mais brandas.
Fora do nosso coração, não sabemos onde Camões nasceu; nem o ano ou o dia em que saiu da “materna sepultura” para o primeiro amanhecer. Como não sabemos onde estudou ou quem lhe ensinou o muito que sabia. Nem isso importa. Nalgumas linhas da sua poesia, e sobretudo nas poucas cartas que indubitavelmente são dele, pode ler-se que, como português, encarnou até à medula toda a nossa condição: pobreza, vagabundagem, cadeia, desterro. “Erros”, “má fortuna”, e “amor ardente” se conjuraram para fazer daquele alto espírito do Maneirismo europeu uma das figuras mais desgraçadas da via-sacra nacional. Por “erros”, talvez se possa entender um cristianíssimo arrependimento daquele marialvismo da sua juventude; a “má fortuna” não pode ter sido senão a de ter vivido num tempo em que “Portugal era uma casa sem luz em matéria de instrução”, e se preparava fatidicamente para abandonar todas as suas guitarras nos campos de Alcácer Quibir; quanto ao “amor ardente” – não foi o próprio Camões que se mostrou dividido entre o límpido apelo dos sentidos e toda uma platonizante teoria de amor bebida em Petrarca e Santo Agostinho?
Não sabemos também quem o poeta tenha amado, para lá das anónimas “ninfas de água doce” do Mal-Cozinhado e outros bordéis de Lisboa. Mas que tais “ninfas” tiveram na sua vida importância, ninguém pode duvidar. As cartas de Camões, e como fonte da sua vida privada nada temos mais seguro, além de nos darem notícia do seu espírito arruaceiro, quase não falam noutra coisa. Que a sua poesia só muito raramente tem a ver com os “pagodes” de Alfama é óbvio, mas dali deve ter partido algumas vezes para, depois de metamorfoses várias, voar muito alto, como sempre aconteceu, particularmente em herdeiros da cortezia e do dolce stil nuovo. Porque a verdade é que nenhuma poesia portuguesa partiu tanto dos sentidos para tanto se desprender deles, como a de Camões. Talvez Aquilino tenha razão: Camões deve realmente ter saboreado com o corpo todo as coisas boas, defesas ou permitidas da vida, mas teremos que acrescentar que nenhum outro poeta foi capaz de se erguer tão alto ao céu platónico das idéias, e tão pungentemente meditar sobre as “mudanças” a que todo o amor está sujeito, ou tão dramaticamente arrancar do “abismo infernal de (seu) tormento” a transparência de um canto dilacerado por uma lúcida consciência de desamparo e desconcerto. E não me venham com maniqueísmos: “damas da corte” de um lado, e do outro “damas de aluguer” – o amor ergue os seres ao horizonte da dignidade, e Camões, ou quem quer que seja, se na verdade amou, nunca fez outra coisa.
Se não estou em erro, foi António Sérgio quem mais incisivamente trouxe o lirismo camoniano para a esfera do neoplatonismo, e sublinhou, além de preocupações religiosas e morais, a raiz metafísica da sua poesia amorosa. Ao pôr-se o acento sobre o carácter intelectual desta poesia, procurava-se corrigir uma idéia bastante corrente de que o poeta seria predominantemente sensorial, antimetafísico, e não sei que mais. Claro que Camões, como homem, medida de todas as coisas, foi um e outro, porque nada impede que a música de uma natureza mesmo profundamente sensual, mas de eminente capacidade visionária, possa subir às mais altas torres; que se saiba, não há incompatibilidade nenhuma entre o estar-se eroticamente “a prisões baixas atado” e ter no “alto pensamento” a sua naturalíssima complementaridade.
Afinal, este homem que deixou fama de desabusado, este pobre soldado raso que regressa de Ceuta a “manqueja(r) de um olho” (para o dizermos com terríveis palavras suas), que serviu na Índia durante cerca de três lustros sem sequer ter ganho para as passagens de regresso à pátria, este homem que, segundo um dos seus primeiros biógrafos, ao morrer não tinha um lençol para lhe servir de mortalha, estava destinado a consolidar a Hierarquia com o seu Canto – o supremo ressoar das águas de todos os nossos mares e de todos os nossos olhos.

Andrade, Eugénio de . Prefácio a “Versos e Alguma Prosa de Luís de Camões”, Lisboa, Moraes Ed., 1977, seleção de E. de Andrade.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Diário de Bordo de Maarkos Sestios

Diário de Bordo de Maarkos Sestios, Lallemand, Ferdinand; Ed. Muiraquitã, Niterói, 2002, 176 pág.; Tradução de Gilberto Emílio Chaudon.

Este livro é a tradução, para o português, do original em francês “Journal de bord de Maarkos Sestios”, Editions de Paris, Paris, 1955 (esg.), e que teve edições em inglês, alemão e polonês.
O Autor, Ferdinand Lallemand, arqueólogo especializado, integrou a equipe do Serviço Francês de Pesquisas Submarinas – dirigido por Jacques-Yves Cousteau – que, em 1953, localizou e estudou os restos de um naufrágio ocorrido por volta de 230 a.C nas proximidades de Marselha. O resumo dos trabalhos foi estampado em artigo do próprio Cousteau na revista “National Geographic Magazine” de janeiro de 1954.
A partir de minuciosa reconstituição arqueológica e histórica empreendida sobre os restos encontrados foi possível estabelecer que se tratava de um navio mercante ( um miriânforas – navio cargueiro com 36 m de comprimento, 12 m de largura e 5 m de pontal, deslocando de 700 a 800 ton.), de propriedade de um armador de origem romana, chamado Maarkos Sestios, nascido e criado em Delos – a menor das ilhas Cíclades, berço de Apolo e Ártemis, segundo a tradição. Essa nau trazia para Marselha, quando do naufrágio, vinhos e cerâmicas.
Ferdinand Lallemand participou ativamente de toda a pesquisa e refez, ele mesmo, o itinerário do navio desde Marselha até Delos. Seguindo os indícios e vestígios da passagem dessa nau, foi capaz de criar o relato do Diário de Bordo.
Muito embora o ‘Diário’, enquanto fonte primária, não tenha sido encontrado, ou talvez sequer existido, o Autor produziu um texto extremamente cativante e que ‘se non è vero, é bene trovato...’.
O valor desse texto é literário, histórico, arqueológico e náutico e vem apoiado por inúmeras notas de rodapé e ilustrações. Ao longo de suas 176 páginas podemos reviver aqueles dias decisivos, quando Roma se expandia a passos largos, vigorosos, após haver destruído Cartago – como tanto exortara Catão, o Antigo – e se apropriava do solo, das gentes e do legado Grego.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O Menino Pateta

Sempre que voltávamos pela Rua de S. José, o menino pateta estava à porta de sua casa, sentado numa cadeirinha, olhando os outros passar. Era uma dessas crianças a quem nunca chega o dom da palavra nem a dádiva da graça; menino alegre ele, e triste de ver; para sua mãe, tudo, nada para os outros.
Um dia, quando passou pela rua branca aquele mau vento negro, o menino não estava à porta. Um pássaro cantava no umbral solitário, e eu lembrei-me de Curros, mais pai do que poeta, que, quando ficou sem o filho, perguntou por ele à borboleta galega:
Volvoreta d’aliñas douradas...
Agora, que vem a Primavera, penso no menino pateta, que da Rua de S. José partiu para o céu. Deve estar sentado na sua cadeirinha, ao lado das rosas, vendo com seus olhos, outra vez abertos, a passagem dourada dos bem-aventurados.

Jiménez, Juan Ramón. ‘Platero e Eu’, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, trad. de José Bento.