quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Orelha de um livro

Kátia Jacobson, artista plástica em pleno domínio de seus meios de expressão, expõe seu primeiro livro de poemas.
Um livro de aprendizagens várias. Um corpo e uma alma aprendendo a viver, vivendo para aprender, apreender.
Uma mulher com todos os sentidos despertos - e isso não é pouco - tocando os limites, buscando alargar esses horizontes segundo uma tradição.
E a qual tradição nos remete? Sem dúvida, àquela que afirma: o Verbo demora entre nós.
Livro de fundação, de resgate. Mas também, e principalmente, de projeção. E a lua (a Luz da lua) é aqui a réstia a iluminar e orientar a jornada, digo, a peregrinação.
Se me fosse pedido para destacar um poema deste livro, certamente eu escolheria aquele - ABRIL (ou BRANCO E PRETO) - que nos situa em pleno engarrafamento de trânsito, banal e prosaico, mas onde a passagem de uma mulher com uma pinha nas mãos instaura a Poesia. Há outros poemas do mesmo quilate. Ao leitor o prazer do encontro.
Desce, maná, sobre nós.

( Luz da Lua sobre Metade do Papel, de Kátia Jacobson, Ed. Muiraquitã, Niterói, 2002, 88 pág.)

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

CAMÕES E AS ALTAS TORRES

De Camões, em pura verdade, muito pouco sabemos. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu mais pobre ainda (se não miseravelmente), ele, que acumulou bens que milhares e milhares de homens não têm chegado para delapidar. E será difícil exaurir tão fabulosa fortuna. Porque – quem o duvida? – foi Camões que deu à nossa língua este aprumo de vime branco, este juvenil ressoar de abelhas, esta graça súbita e felina, esta modulação de vagas sucessivas e altas, este mel corrosivo da melancolia. Daí ser raro o verso português digno de tal nome que as águas camonianas não tenham molhado de luz, desde as mais ásperas das suas consoantes às suas vogais mais brandas.
Fora do nosso coração, não sabemos onde Camões nasceu; nem o ano ou o dia em que saiu da “materna sepultura” para o primeiro amanhecer. Como não sabemos onde estudou ou quem lhe ensinou o muito que sabia. Nem isso importa. Nalgumas linhas da sua poesia, e sobretudo nas poucas cartas que indubitavelmente são dele, pode ler-se que, como português, encarnou até à medula toda a nossa condição: pobreza, vagabundagem, cadeia, desterro. “Erros”, “má fortuna”, e “amor ardente” se conjuraram para fazer daquele alto espírito do Maneirismo europeu uma das figuras mais desgraçadas da via-sacra nacional. Por “erros”, talvez se possa entender um cristianíssimo arrependimento daquele marialvismo da sua juventude; a “má fortuna” não pode ter sido senão a de ter vivido num tempo em que “Portugal era uma casa sem luz em matéria de instrução”, e se preparava fatidicamente para abandonar todas as suas guitarras nos campos de Alcácer Quibir; quanto ao “amor ardente” – não foi o próprio Camões que se mostrou dividido entre o límpido apelo dos sentidos e toda uma platonizante teoria de amor bebida em Petrarca e Santo Agostinho?
Não sabemos também quem o poeta tenha amado, para lá das anónimas “ninfas de água doce” do Mal-Cozinhado e outros bordéis de Lisboa. Mas que tais “ninfas” tiveram na sua vida importância, ninguém pode duvidar. As cartas de Camões, e como fonte da sua vida privada nada temos mais seguro, além de nos darem notícia do seu espírito arruaceiro, quase não falam noutra coisa. Que a sua poesia só muito raramente tem a ver com os “pagodes” de Alfama é óbvio, mas dali deve ter partido algumas vezes para, depois de metamorfoses várias, voar muito alto, como sempre aconteceu, particularmente em herdeiros da cortezia e do dolce stil nuovo. Porque a verdade é que nenhuma poesia portuguesa partiu tanto dos sentidos para tanto se desprender deles, como a de Camões. Talvez Aquilino tenha razão: Camões deve realmente ter saboreado com o corpo todo as coisas boas, defesas ou permitidas da vida, mas teremos que acrescentar que nenhum outro poeta foi capaz de se erguer tão alto ao céu platónico das idéias, e tão pungentemente meditar sobre as “mudanças” a que todo o amor está sujeito, ou tão dramaticamente arrancar do “abismo infernal de (seu) tormento” a transparência de um canto dilacerado por uma lúcida consciência de desamparo e desconcerto. E não me venham com maniqueísmos: “damas da corte” de um lado, e do outro “damas de aluguer” – o amor ergue os seres ao horizonte da dignidade, e Camões, ou quem quer que seja, se na verdade amou, nunca fez outra coisa.
Se não estou em erro, foi António Sérgio quem mais incisivamente trouxe o lirismo camoniano para a esfera do neoplatonismo, e sublinhou, além de preocupações religiosas e morais, a raiz metafísica da sua poesia amorosa. Ao pôr-se o acento sobre o carácter intelectual desta poesia, procurava-se corrigir uma idéia bastante corrente de que o poeta seria predominantemente sensorial, antimetafísico, e não sei que mais. Claro que Camões, como homem, medida de todas as coisas, foi um e outro, porque nada impede que a música de uma natureza mesmo profundamente sensual, mas de eminente capacidade visionária, possa subir às mais altas torres; que se saiba, não há incompatibilidade nenhuma entre o estar-se eroticamente “a prisões baixas atado” e ter no “alto pensamento” a sua naturalíssima complementaridade.
Afinal, este homem que deixou fama de desabusado, este pobre soldado raso que regressa de Ceuta a “manqueja(r) de um olho” (para o dizermos com terríveis palavras suas), que serviu na Índia durante cerca de três lustros sem sequer ter ganho para as passagens de regresso à pátria, este homem que, segundo um dos seus primeiros biógrafos, ao morrer não tinha um lençol para lhe servir de mortalha, estava destinado a consolidar a Hierarquia com o seu Canto – o supremo ressoar das águas de todos os nossos mares e de todos os nossos olhos.

Andrade, Eugénio de . Prefácio a “Versos e Alguma Prosa de Luís de Camões”, Lisboa, Moraes Ed., 1977, seleção de E. de Andrade.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Diário de Bordo de Maarkos Sestios

Diário de Bordo de Maarkos Sestios, Lallemand, Ferdinand; Ed. Muiraquitã, Niterói, 2002, 176 pág.; Tradução de Gilberto Emílio Chaudon.

Este livro é a tradução, para o português, do original em francês “Journal de bord de Maarkos Sestios”, Editions de Paris, Paris, 1955 (esg.), e que teve edições em inglês, alemão e polonês.
O Autor, Ferdinand Lallemand, arqueólogo especializado, integrou a equipe do Serviço Francês de Pesquisas Submarinas – dirigido por Jacques-Yves Cousteau – que, em 1953, localizou e estudou os restos de um naufrágio ocorrido por volta de 230 a.C nas proximidades de Marselha. O resumo dos trabalhos foi estampado em artigo do próprio Cousteau na revista “National Geographic Magazine” de janeiro de 1954.
A partir de minuciosa reconstituição arqueológica e histórica empreendida sobre os restos encontrados foi possível estabelecer que se tratava de um navio mercante ( um miriânforas – navio cargueiro com 36 m de comprimento, 12 m de largura e 5 m de pontal, deslocando de 700 a 800 ton.), de propriedade de um armador de origem romana, chamado Maarkos Sestios, nascido e criado em Delos – a menor das ilhas Cíclades, berço de Apolo e Ártemis, segundo a tradição. Essa nau trazia para Marselha, quando do naufrágio, vinhos e cerâmicas.
Ferdinand Lallemand participou ativamente de toda a pesquisa e refez, ele mesmo, o itinerário do navio desde Marselha até Delos. Seguindo os indícios e vestígios da passagem dessa nau, foi capaz de criar o relato do Diário de Bordo.
Muito embora o ‘Diário’, enquanto fonte primária, não tenha sido encontrado, ou talvez sequer existido, o Autor produziu um texto extremamente cativante e que ‘se non è vero, é bene trovato...’.
O valor desse texto é literário, histórico, arqueológico e náutico e vem apoiado por inúmeras notas de rodapé e ilustrações. Ao longo de suas 176 páginas podemos reviver aqueles dias decisivos, quando Roma se expandia a passos largos, vigorosos, após haver destruído Cartago – como tanto exortara Catão, o Antigo – e se apropriava do solo, das gentes e do legado Grego.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O Menino Pateta

Sempre que voltávamos pela Rua de S. José, o menino pateta estava à porta de sua casa, sentado numa cadeirinha, olhando os outros passar. Era uma dessas crianças a quem nunca chega o dom da palavra nem a dádiva da graça; menino alegre ele, e triste de ver; para sua mãe, tudo, nada para os outros.
Um dia, quando passou pela rua branca aquele mau vento negro, o menino não estava à porta. Um pássaro cantava no umbral solitário, e eu lembrei-me de Curros, mais pai do que poeta, que, quando ficou sem o filho, perguntou por ele à borboleta galega:
Volvoreta d’aliñas douradas...
Agora, que vem a Primavera, penso no menino pateta, que da Rua de S. José partiu para o céu. Deve estar sentado na sua cadeirinha, ao lado das rosas, vendo com seus olhos, outra vez abertos, a passagem dourada dos bem-aventurados.

Jiménez, Juan Ramón. ‘Platero e Eu’, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, trad. de José Bento.