Notas para uma poética
Um poema se escreve sob granizo, ou nas frentes de inverno,
quando nos protegemos sob casamatas de zinco
Um poema se escreve quando a noite caiu e nem um fósforo
Um poema se escreve quando é preciso renascer das cinzas
- quando todos, para ganhar a vida, se tornaram
zelosos funcionários da Morte
Um poema não se escreve com a razão
Um poema se escreve com as mãos
como quem reza
como quem toma nas mãos um punhado de terra
O caracol
Mora entre as sombras eternas do fundo do pátio
e não canta. Antes inclina as antenas
e capta
a branda aspereza do dia
À noite sai,
tece uma seda líquida nos ladrilhos de cimento
Nem é um bicho, é
um silêncio
lentíssimo - mucosa e casa
movendo-se
Sábio molusco
No estio adverso encolhe-se feito feto
na valva em espiral. E adere
- úmido -
à dura pele da terra
(todo ele concha
e nostalgia
da unidade)
domingo, 27 de abril de 2008
domingo, 20 de abril de 2008
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Miguel Torga
Revelação feita ao Poeta
O templo era de luz e de granito,
E na fachada, a fogo, estava escrito
Um aviso de trágico desdém.
Dizia assim a olímpica inscrição:
Esta deusa não ergue a sua mão
Para servir ninguém.
Nihil Sibi, 3ª ed., Coimbra, 1975
sexta-feira, 11 de abril de 2008
Enquanto escrevia
Enquanto escrevia, uma árvore começou a penetrar-me lentamente a mão direita. A noite chegava com esses antiquíssimos mantos; a árvore ia crescendo, escolhendo para domínio as águas mais espessas do meu corpo. Era realmente eu, este homem sem desejos de outro corpo estendido ao lado? Já não me lembro; passava os dias a dormir à sombra daquela árvore; era o último verão. Às vezes sentia passar o vento, e pedia apenas uma pátria, uma pátria pequena e limpa como a palma da mão. Isso pedia; como se tivesse sede.
Eugénio de Andrade, Memória Doutro Rio, Limiar, Porto, 1978
Grifos nossos.
Eugénio de Andrade, Memória Doutro Rio, Limiar, Porto, 1978
Grifos nossos.
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