Uma noite, uma gata
Ela está
agora em meu colo, enrodilhada, e serenamente ressona confiante. Para ela, o
mundo lá fora não existe. Apenas ela e eu, tarde da noite.
Passo a mão
em sua cabeça, desço ao pescoço, ao dorso, até ao fim, que se encontra com o
início, de onde recomeço.
Agora lhe
afago o queixo, onde sinto todo o seu contentamento. Olhos cerrados, entrega-se
totalmente.
É
assim quase todas as noites, enquanto diante do monitor de led vou assistindo
ao mundo lá fora, distante, como a um filme distópico, bizarro e cruel.
Facilmente passo a outro filme onde vejo as belezas e maravilhas desse mesmo
mundo, tão contraditório.
Agora
saltou de meu colo e me pede água. Levanto-me da cadeira, vou ao banheiro, abro
a torneira e ela bebe na concha de minha mão. Sinto-me, a um tempo, senhor e
vassalo.
Não
poucas vezes reflito sobre a nossa relação. Construo analogias, humanizo essa
proximidade, busco saber quem, dos que já se foram, está aqui hoje, comigo,
neste corpinho que me aquece as pernas. Mas não sou budista, não sei se creio
na metempsicose.
Ela
agora cobriu o focinho com a pata esquerda.
Faz um frio leve e saudável, a Lua já
vai minguando, amanhã será um novo dia. De minha janela verei o dia renascer
ouvindo os galos e os bem-te-vis, e as maritacas estridentes.
As
novas folhas do ipê já brotam, o Sol aparece a cada dia um pouco mais à minha
esquerda, e mais cedo, e ouvi há dois dias uma sabiá.
Ah,
e pude ver o alinhamento da Lua com Júpiter e Saturno durante três noites.
E
ela dorme, apenas dorme.
A
eternidade é uma gata adormecida.
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