domingo, 5 de fevereiro de 2012

Arnau Pons

ARNAU PONS : a palavra que ofusca
Nascido em Majorca, em 1965, vive am Barcelona onde alia a criatividade poética ao ensaio e à tradução literária.
Entre os poetas de sua preferência encontramos Luiza Neto Jorge, Herberto Helder, Jacques Dupin, Paul Celan, entre outros. Este veio a marcar profundamente o seu imaginário e o seu meticuloso exercício da palavra.
Desde 2001 integra o grupo de investigação da obra de Celan, criado em Paris por Jean Bollack.
Apresento aqui uma pequena selecção dos poemas que em 1996 foram lidos em Lisboa, num encontro organizado pela Fundação Gulbenkian, agora revistos por mim, em
versão livre de homenagem à sua obra.
Ele, com a sua paixão por Paul Celan, e outros, de voz tão inspirada quanto a dele, merecem entre nós o destaque devido a esta nova geração de poetas da Catalunha.
Sempre tão perto e tão longe!
Há nesta poesia de Arnau Pons, por um lado tão íntima e ao mesmo tempo tão universal, um apelo que é de sempre: o de buscar (encontrar) na palavra aquela réstea de luz que seja redentora, aquele fragmento de ser que não se negue aos outros, aquele buraco negro da memória onde o nosso tempo não se deve esconder, não deve esquecer nunca que houve outrora um olhar desviado, transviado, e que o negro da História está sempre ali à espreita.
Poesia que relê o sofrimento de um desamparado e desesperado Paul Celan enquanto figura emblemática da própria condição humana: o que viu e não se desviou, viveu para contar e morreu por isso, como tantos no mundo, ainda hoje ( nós somos todos esse judeu errante, perseguido, em busca de si mesmo e do seu deus ausente).
Poesia que busca para lá dessa nigredo o seu própro sentido do dizer.
Encontro em Arnau um olhar discreto, mas severo: de exigência ética e estética.
Ele não pratica, na sua arte, a elegância fácil, a limpidez e o brilho da sua escrita nascem de outras águas, as da consciência moral que busca para lá do Belo o Bom e o Verdadeiro da tríade platónica.
Filosofia que ofusca: a Ética como raiz do Ser, a Estética como fundamento da existência.
Y.K.Centeno
Lisboa, 2012


RISCAS AS ÁGUAS,
sob o umbigo, encerrado,
puxa-te a mão para um céu que chora,
e sais
entre dedos sedentos do teu negrume,
lodo fétido,
festa louca e de viver tão farto;
passas à beira das árvores, gritas
o monte de visco, a feia besta
que nasceu contigo;
estremece a água, dentro da casca
que te afogou retorces-te
qual morte dentro do olho que te criou.
De um mau sonho, de uma escuridão,
agora cospes fogo e escuridão, escuridão;
amendrontas-te, procuras
como uma serpente aquele mamilo de rocha:
até secá-lo.
Tens amargura no amargo da boca.
Tens o cheiro do pai.


DIMANADA,
colhias
o veneno com o corpo; a flor
fechada, tão adormecida do teu sexo,
apenas lábio
cavado na mudez;
cega de amêndoa,
raça de olhos fechados…
Cabelos errantes, provavas
(dente cravado na morte: uma oração desfeita
a fim de ser criada)
o sangue a chorar dos ramos.
Do norte
veio o sangue,
e havia de invadir as águas;
do norte desatou-se aquele vento
que agora te inclina,
aninhada nele, entardecida de febre
- a mão amputada que se estende
para ciosamente se saciar
de ti.


AGARRAS-TE à voz, luz de destempo
que faz encaminhar a vida;
ninguém
se cala, todos querem escrever as trevas;
em direcção a ti, aquilo: empalidece
com lepra e neve a mão coberta,
as unhas com arcos de promessa;
rastos: que esboçam?
portas: que abraçam?
real uma só paisagem: os mudos,
arteriais, dragões alados de Medeia;
cosidas letras
estrias do céu;
sob a pele,
ficam os cadáveres das palavras;
uma poça de sangue abafa no escuro
um grito;
subitamente ergues os olhos
para a escória.


CHEGAS, acreditas, ao fim,
que a água obtura
com a sua espectral maneira
do não dizer,
e lanças-te aí
para respirar a falta de ar,
fendida pelos vivos
tremores da emanação concêntrica
formada dentro de ti. Então voltas ao barro;
sobre os seixos crescem
os flocos de ninguém que lês e fazes teus.
Atravessas a hora,
a cicatriz gasta daquele olho;
persistes: dele extrais,
a pouco e pouco, a luz viscosa
da adormecida estrela que abandonas,
sonhando,
num ramo incertamente escrito.
Um peixe morto, desolhado,
rasteja pelo abismo, seguindo a invertida
Via Régia
rumo à promessa que quebraste.
Dois reis giram à tua volta;
és posto
fora
de todos os lugares,
e a ti mesmo te investes como rei.


O NOME DO ARCO és tu;
a sua flecha,
uma foice negra.
Lança-a para o alto:
leva consigo, cravado no coração,
um fruto por morder –
-ceifado.


NOITES QUE FABRICAS, rigorosas;
as mãos na
clara-sementeira das centáureas
o sangue derramado exposto
ao vento,
Tantas estrelas quantas podes abarcar,
tanto negrume de nuvens, tantos
desastres de chuva, as imagens do mundo
destituídas,
tudo isto se abre,
decresce
extingue-se apenas
dentro da cesura, um corte
de miséria com
os tenros anos no cardal,
de novembro a novembro,
dentro das gaiolas,
como os tão vãos
ofiúros da videira, com a dormideira,
junto aos duplos reinos:
entre os dedos toda
aquela escuridão que estagna, eterna;
mais nada.


                              ( neige-en-dedans blancheur
                                  occultée
                                                  où tourne le témoin
                                                                                  JEAN DAIVE)
JUNTO À LUZ
que fracturada vem do alto
com débil ferocidade:
a neve que entre- dois-
crepúsculos trocava blafésmias,
bem nossa
é a palavra que ali se acrescenta,
e sem chama, os alvos,
quando lembranças não desejadas trazem dor,
os tão calados,
de súbito
caem
aqui.
Então será preciso suspender o cansaço
por horas, solidão.


OS BRANCOS
( à memória de Ossip Mandelstamm)
dentes do verso, o olho
em direcção à agulha, pedaço
de mar
na pestana
ardente.
Remoto,
sob a risada do ciclone,
a sarça errante
fala do primeiro seio
nascido
da noite do estilhaço;
a nave inflama-se,
afunda-se o astro no seu rastro;
no braço direito
uma gota lunar,
onde as abelhas de Proserpina
fazem colmeias de sangue.


UM VAZIO em cada mão para olhar para o outro,
O ar crava nele a raiz, a solidão canta
canções de adeus, o vinho
cresce,
bebemo-lo até que chegue
o inverno,
leitosas babas o conduzam ao mar,
recordações de uma escrita confusa,
e num canto do céu um repouso
se esquece do nosso juramento;
temos nas nossas mãos o reverso dos dias.


DENTRO DE DELETÉRIOS SIGNOS, larvas
de um outro dizer,
e folhas de tão tenras devoradas, também,
sob o céu do Éden;
o tempo, escuridão irreal,
noite após noite, limpo de palavras;
um tronco, sem outono, lido:
lá cima
fiéis ao seu crescer, lamentos;
ao afastar-se,
um Eu,
vagamente aprisionado,
projecta, pelo passado-adentro, o velho recomeço de sempre:
bocas que fazem de bebedouro a outras bocas,
olhos que se juntam atrás de outros olhos.


CACOS de sepultura incertos:
uma cova de ontem
onde as tuas mãos adormeceram.
Unir as duas margens
avançar recuando
com quantos silêncios forem necessários.


DE QUE SEDE QUE TE ENCHE, em que fonte desperta
e por qual nome?
Orando com voz estranha, passiva,
desestrelando entre as noites, sem olhos,
grades que fecham, deixando estar, abertos:
uma lágrima,
de lugar em lugar usurpa a voz,
e então procuras
o que é, amargamente, pois
é um brilho de osso roçando o esquecimento,
ou alguma outra palavra, espanto e luz,
com auroras de guerra, se
por mau encontro
supuras e te fechas,
como gente sinistra,
por dentro, um mal menor,
não podemos dizer
o teu tardar,
não podemos dizer, dentro da tarde,
que é tarde, um desejo rasgado,
que nos tira
tanta, nem toda, tanta
tanta tristeza.


GOTA A GOTA o sofrimento: o seu esforço
vale uma quantas
moedas de alma.


UM SONHO ressequido, de rosas e de espinhos
em que se aprende com sombras a esperar,
só isso
( vento de quimeras na boca) até
que chegue o quando:
aquele em que possa - algum de nós?
incerto e vacilante não esperar tanto
o regresso das flores
com o desabrochar das chagas,
mas o florir de novo
dos regressos sangrentos.
Pois não se espera
rosas de tempo,
mas apenas o tempo
que é o tempo das rosas,
só o tempo
de voltar para trás o único
de dizer o nunca.
(para J-D.)


SEMPRE por perto: a ânsia demente,
a eterna grade,
cristal do que não dissemos.
Que não
diremos mais
nem aqui.
Estreita franja
de luz
onde nos deixam
permanecer não mais que um breve instante.
Escura densidade que respiras.


TÃO ESCURO COMO O OLHO, tão denso: um sono
nos reenvia para
o único ermo das trevas,
aquele que nos torna mais livres.
Enterrámos na retina
uma parte do crepúsculo,
temos as mãos
presas ao tráfico
clandestino de franquias:
e é preciso,
é preciso que paguemos
por toda o negrume
que temos de levar, como quem
avaramente transporta
frescas estrelas
para a
regulação da luz.



LIMBOS RECUPERADOS
perigos da nossa travessia:
descarnar as palavras, a golpes de proa,
é o que fazemos a deshoras na noite
só isso, entre as ondas de sempre,
as velas enfunadas de cansaço,
silêncios
na cremação o embate
o lábio de alguém
de encontro
à peste que orienta os asfodelos, as terras
nunca mais vistas da infância,
abençoados aqueles que, errando fixos,
antes do caos da aurora,
transportam o nome,
canto de tristezas,
lua morta.


SECRETA, como a fonte
que fará brotar a ânsia,
levada por silêncios que não são,
bela de golpes
que a ergueram
e digna
de um desmutismo lento,
hoje aqui sem te invocar.


PREMIR as margens da noite
para que ressurja.
Nada que se cante, nada que seja tecido,
o passo largo na gravilha,
caminho de estrelas e tu:
destruída pelo instante, apesar disso
minha.


AÍ ONDE O SOPRO nos marca, aí nasce
discordante, a conversa a dois
para de novo nos unir.
Então se abre
a não vontade de sonho, o implacável
tempo de deshora,
sem entender aqueles que suaram
pelos nossos contras:
tradução de momentos agarrados
ao crâneo esvaziado, onde os montes
de órbitas cegas
nos tolhem os passos, marcas
de absurdo, atrás
da sela do velho potro,
pintado de se –
pulcros, mãos, com crinas,
de ignorância tão severa;
nunca mais
sobre nós, de macilentos
rostos, o ar
que nos falta reter.
( “Nichts davon, quer durch die Worte kommen Reste von Licht / Nenhuns restos de luz nos chegam somente através das palavras” Franz Kafka)

Postagem transcrita do blog Literatura e Arte, de Yvette Centeno.

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