terça-feira, 1 de maio de 2012

Uma geometria ancestral




Silêncio de roça ao meio-dia. Já não se ouvem os apupos dos homens guiando o arado – eia! boi; vastra, boi! Os bois, à sombra do umbuzeiro, ruminam sonolentos, libertos por algum tempo da canga. Os sulcos ainda há pouco abertos, expondo o negro úmido da terra revolta, tornam-se agora cinzentos, quebradiços. Aqui e ali, os quero-queros colhem os insetos, que buscam abrigo cavando o solo pressurosos, atordoados de tanta luz e secura. Os homens foram para casa. Até às duas da tarde o campo é território interdito, entregue à luz a prumo, à luta de vida e morte entre pássaros e insetos e ao repouso do gado.
             Os homens chegam à soleira do alpendre e se descalçam, tiram os chapéus. No tanque, de onde escorre pelas bordas uma água fresca e limpa, banham-se os rostos, os antebraços, os braços. No soalho de pinho, limpo e lustroso, ressoam seus passos; a chaleira na trempe já está na temperatura correta, a cuia de mate preparada, a comida sendo ultimada. Sentam-se dois a dois em cada um dos bancos ao longo da mesa. De boca em boca passa a cuia: pai, filho mais velho, o do meio, o caçula. A mãe senta-se ao lado do caçula. Ela sorve uma cuia e vai tratar de servir a mesa: arroz, feijão vermelho, frango cozido, batatas e repolho. Apenas o arroz foi comprado na venda do Germano. E o sal.
            Voltam os homens para o campo. O sol ainda arde nos ombros, mas os bois, fartos de ruminar, aceitam a canga e pelo vale ecoam novamente os apupos: eia! boi; vastra, boi! Vão assim cobrindo de feridas as encostas íngremes e pedrentas, feridas que ao cicatrizar guardam as esperanças do ano que virá, depositadas com fé, suor e resignada tradição.
             Quando aquele que também fabrica os arco-íris se cansa de dardejar os homens, eles atrelam os bois à carroça, embarcam o arado e se vão para casa. Chegam ao arroio e param antes de cruzá-lo, para dar de beber aos bois.
             Já está escuro quando pisam no terreiro; no curral, a mãe faz a segunda ordenha, alumiada por um lampião a querosene. Na cozinha, o fogão aquece o jantar e a chaleira para o mate. Nas paredes caiadas, de emboço grosseiro, onde as traves escuras de madeira desenham uma geometria ancestral, as chamas no fogão projetam luzes e sombras; uma folhinha de cromo comercial, onde João Paulo II abençoa a todos, adeja ao ritmo do fogo; uma moldura oval mostra o retrato do casal, há muitos, muitos anos; em outra moldura, pequena, retangular, a mãe estreita um bebê, uma menina. Presa a essa moldura uma flor, a cada dia renovada.

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